Sempre que mencionavam a solidão do homem moderno eu desenhava mentalmente a imagem de um sujeito magro, morando em um apartamento minúsculo e antigo (tanto quanto podem ser pequenos os apartamentos antigos, já que as kitnets contemporâneas comprovaram que é possível morar em qualquer lugar onde caiba um ser humano na horizontal), vestindo roupas limpas com a dignidade de quem tem uma muda para cada dia da semana, esparramado em uma poltrona encardida, passando levemente os dedos sobre as espumas que escapam da engenharia das molas que um dia fizeram daquele assento um descanso aprazível.
Imaginava as famílias sorrindo pela luz esverdada da tv ferindo o escuro da sala acarpetada em marrom, os miasmas das risadas dos outros interrompidas pelas garfadas no almoço posto impecavelmente à mesa batendo na fronte do sujeito que contempla a novela sem mover os olhos. É imprescindível que as janelas estejam fechadas há alguns dias, e que um cheiro de sopa misturado com cozido de carne tenha se agarrado nos armários de madeira da cozinha. Tudo nessa casa deve estar mais ou menos limpo, à exceção das desorganizações recentes, a pia abriga 3 dos 4 pratos de cor âmbar que compõem o jogo de jantar.
O riso das crianças, o sino da igreja, as buzinas dos carros, o barulho que as chaves fazem antes do ranger das portas vizinhas, todos estes entram pelas frestas e, ultrapassando o limiar das portas, janelas e ralos do banheiro e da pia, impregnam a cada dia mais os azulejos e as infiltrações do teto com o lodo verde da obrigação.
Eu durmo e acordo com as cortinas do quarto abertas, assim como as janelas, que são de vidro e correm em ambas as direções pelo trilho prateado que se afixa numa parede branca, assim como todas as paredes do meu apartamento. Quando pude escolher, comprei guarda-roupas, cômoda, prateleiras, mesa e pisos de revestimento brancos. Acendo todas as luzes da casa às 6 da tarde no horário normal e às 7 da noite no horário de verão, e respiro longamente quando, em dezembro, os dias duram até pouco antes do jornal nacional. Tenho mais peças de roupas do que preciso e algumas das vezes a pia fica lotada de vasilhas, porque eu só cozinho quando tenho companhia. Troco a ração do gato duas vezes por dia, mas não me demoro muito observando-o dormir. Já são 3 anos desde que acompanhei a última novela das 9, e de lá prá cá tenho assistido seriados que falam sobre as crises que perpassam as pessoas antes e durante os 30 anos. É tudo muito cotidiano e real, os personagens escutam as mesmas bandas que eu, se decepcionam às vezes com o que tomavam como garantido, falam sobre feminismo e, no fim, viajam tentando encontrar a si próprios. Limpo a casa toda semana, e faço uma faxina mais pesada todo mês. Esfrego com uma buchinha e um pouco de cloro todo o lodo verde que gruda no rejunte dos azulejos do banheiro e, com uma vassoura de cabo comprido, limpo o musgo das infiltrações do teto.
Ontem, enquanto trabalhava em um texto, ouvi o sino da igreja que me avisa às 6 da tarde que é hora de acender as luzes. O sino ontem me pareceu um pouco mais insistente que o normal, acredito que tenha se estendido por mais alguns minutos que os 2 habituais. Esperei que as badaladas terminassem prá que eu me levantasse e fosse cumprir meu pequeno ritual. Junto com o soar, entraram pelas janelas escancaradas balançando as cortinas também abertas os gritos das crianças do prédio vizinho, os anúncios musicados gritados pelos alto-falantes que os carros carregavam pela rua, o tilintar das 90 chaves de cada um dos moradores do condomínio e o ranger subsequente das portas sem graxa nas dobradiças, os latidos dos cachorros o piado dos pardais o arrulho dos pombos a britadeira que come o chão do apartamento superior a água jorrando do borrifador dos jardins o filme pornô que o vizinho ao lado assiste em todas as madrugadas no máximo volume sem fone de ouvido interfones avisando chegadas telefones agudos insistindo em serem atendidos todo o som do bairro entrou pelas grandes frestas do meu apartamento junto com as badaladas lamacentas do sino da igreja, manchou todo o meu branco de um marrom viscoso, subiu até o teto, fez penderem as cortinas em cima das janelas, transformou todo o porcelanato na pior das carpetarias de cor bege.
Então hoje, quando acordei, a lama tinha ido embora e deixado em seu lugar o musgo esverdeado por todos os cantos da casa.