Eu fui atropelada por um daqueles momentos cada vez mais raros em que a música (mas podem ser as palavras, as imagens, as lembranças) chama a gente de volta prá realidade. Porque a realidade não é o passar dos dias de uma semana, a resolução dos compromissos, as preocupações com dinheiro, as vontades. Isso é o que nos distrai da realidade.
A realidade é a perenidade das coisas, o inevitável fim de tudo, dividido entre términos próximos e términos adiados por tanto quanto possível.
Só que meu espírito estava preparado para uma música sobre amor, sobre o arrebatamento do amor, a maior das distrações, e eu ganhei uma enxurrada de realidade na cara quando percebi que o Belchior tava me ensinando que, depois de um certo ponto, não é possível mais viver completamente distraído, ainda que se esteja plenamente apaixonado, gozando no céu e no inferno do outro também, deixando a profundidade de lado.
Então lembrei da única razão que nos leva a escrever: o prenúncio do fim. Imaginei o Belchior morto de amor, sentado num banco, o peito pesado, a voz do amigo berrando em sua orelha, "não vou ser feliz direito", ele pensa, o rosto e o peito corados do sol que lhe invadiu há alguns dias, o cansaço e a inexplicável coragem de fazer tudo de novo, a inexplicável coragem diante da certeza de todos os fins, ele pega o violão prá calar a boca da certeza, prá dizer a ela que ele sabe sim da perenidade da vida, ele já foi muito arrebatado pela realidade, mas ele não desaprendeu a dizer não, ele esmerila o violão, rasga as palavras no papel, essa todo mundo que já foi salvo da angústia da realidade por um sol no quintal, essa quem tem mais de 30 e salvou o fôlego de ser comido pelas traças que se alimentam do guardado, dessa todo mundo vai gostar.