sábado, abril 08, 2006

Semibreve.

Era noite daquelas em que a janela jazia aberta com o único propósito de trazer frio - ainda que uma brisa; talvez até um sopro.
Os olhos percorriam as letras dum livro, buscando ora esquecer-se da vida, ora tomá-la escancarada na cara. Começara até a simpatizar-se com a personagem que ameaçava brotar do espaço entre as linhas, quando entrou mais que pouco frio pela janela.
A sinfonia urbana de carros e alarmes e choros e freios e berros e ódios, mortes e, - sobretudo - cinzas, pareceu se calar por alguns instantes prá ouvir e fazer ouvir o som do piano que emergia sabe-se lá da onde.
Como se sentisse gelada a alma toda, ela se desfez do livro e, em menos de duas colcheias, já postava-se à janela. [tudo à sua maneira: a perna direita cruzando atrás da esquerda; o queixo apoiado nas mãos; o rosto a lavar-se na noite.]
As notas entravam por seus ouvidos e faziam-se reconhecer (ré-ré-ré-mi-ré-dó...) e aumentavam nela aquela aflição (lá-mi-ré-dó) que sempre era sentida quando dessas coisas triviais que assustam de tão bonitas.
Era Lua Branca, e era Chiquinha Gonzaga.
Olhos agora perdiam a razão de ser, que os outros prédios e a rua e a noite davam lugar àquelas lembranças doces. O piano de armário da professora, a partitura a ser vencida, tantos erros - os dedos se atrapalhavam em demasia - a música finalmente enchendo a sala, o peito se inflando com a harmonia daquilo tudo, a perca do raciocínio, o mundo a resumir-se à Lua Branca que escorria de suas mãos.
O piano continuava a ressoar o seu passado (lá-mi-do-ré...), como se tocado para ela e só. As pálpebras recusavam-se a se desgrudar, clamando por não se desvencilharem da ebriedade daquelas memórias.
Foi que, numa sintonia inconsciente, os ré-lá-ré´s supostamente finais da música emendaram-se noutros ré-ré-ré´s, musicando ad infinitum aquele sonho de garota que faz da alma reduto de lembranças, de melodias, daquelas coisas boas e semibreves que cheiram a naftalina.

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