Conseguia sentir o peso dos olhares alheios percorrendo todas as minhas imperfeições - as pessoas podem ser muito ruins, eu pensei depois, enquanto esperava meu ônibus - mas talvez isso fosse apenas o cenário apocalíptico que a cabeça dos paranóicos cria. Porque o paranóico é antes de tudo um egocêntrico incorrigível, que acha que num mundo com tanta gente e tantas desgraças possíveis, todos os infortúnios serão destinados a ele, dono de um faro especializado prá merdas em potencial. Esse tipo específico de egocêntrico também costuma ter como companhia um punhado certo de cigarros; não tantos que esbarrem no vício, mas o suficiente pra salvar os momentos de não ter onde por a mão.
Fechei os olhos por dois segundos que na minha cabeça duraram umas três horas, e quando abri de novo o constrangimento ainda tava ali, quase físico de tão grande. A essa altura eu não sabia mais onde pôr as mãos, pés, olhos e era tomada por uma leve vontade de desaparecer, que cresceu até me por de pé. Levantada, futuquei a bolsa, e lá estavam uns cinco ou seis lucky strikes, mas por hora eu precisava só de um.
O fumante na janela é sempre um ser humano de altas. As conversas à sua volta se tornam facultativas assim que a chama do isqueiro queima os primeiros raminhos do fumo. E nós, que durante a faculdade vimos aquele tanto de filme francês preto e branco - já reparou como, de uma hora prá outra, as pessoas começam a falar de nouvelle vague como se fosse Spielberg? - entendemos que esse é o cenário perfeito prá se divagar entre o limite do poético e do patético.
Observando a vista, eu investia contra a cidade a cada baforada, reconhecendo as ruas em que já estive, construindo uma névoa por sobre elas em cada fim de suspiro. Os telhados e as calçadas ficavam, por algum tempo, embaçados, porque há sempre os dias e os lugares do passado que de tão impossíveis no presente a gente quer apagar.
Quando encarei a cidade de frente, porém, eu fui vencida. O relógio do Itaú estava lá, imponente e meio feio, coroando aquela caixa marrom comprida, caiada com várias janelas, todas iguais. Anos depois e ele ainda certamente derramava hora e clima dentro de algum apartamento do bloco dois, aquele retangular e maior, porém menos alto.
A felicidade agressiva e desesperada de anos atrás parecia agora tão monstruosa, tão perto e tão longe como o próprio Conjunto Governador Juscelino Kubitschek, ambos erguidos sob os pilares de promessas nunca cumpridas - todo mundo sabe que o JK cresceu sob a intenção de ser algo de sucesso inovador, e passar em sua frente hoje em dia é como que testemunhar não só seu fracasso como sua maleabilidade. A gente é o que pode ser naquela hora.
Não sei precisar a quantas passadas eu estava da minha antiga felicidade, era uma unidade de medida volúvel: ao alcance de uma mirada e a não sei quantos muitos quarteirões de distância. Acendi outro cigarro e destinei todo o refugo das tragadas a encobrir o prédio e tornar as lembranças mais distantes, menos cruéis, mas acho que dessa vez nem se eu tivesse um maço. Esse prédio de frustrações é grande demais.
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