sexta-feira, setembro 23, 2005

Retrato
Cecília Meirelles

"Eu não tinha esse rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

(...)

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
-Em que espelho ficou perdida
A minha face?"


......................................................................................... .

Posso chamar de "Retrato" também?

Hoje ela levantou-se da cama e, ao contrário do usual, o sol ainda não deixava distinguir com perfeição as fotos em cima do criado mudo. Mas a diferença nesse caso era pouca. Já sabia que num porta retrato seu filho sorria a conquista dum diploma e que, no outro, era o genro quem sorria a conquista de sua filha - esta que na foto só fazia ser bonita.
Deixou de lado as pantufas que confirmavam os alguns anos que ela já havia visto passar, e caminhou até a janela de seu quarto. Soprava uma brisa fresca, feito assopro de mãe em olho incomodado por cisco.
Parecia conveniente largar-se ali naquele frescor de dia que nasce, e então ela ficou.
As mãos pendiam do peitoril da janela e dançavam pelo vento calmo, enquanto as lembranças lambiam-nas dum jeito tão real que ela podia sentí-las saltar de dedo em dedo e conduzí-la prá um tempo em que a carne ainda era rija e não havia pintinhas no colo nem varizes nas pernas. Tempo em que podia sorrir sem que duas rugas em volta dos lábios denunciassem quantos tantos outros risos forçados ela já havia esboçado.
E essa imagem da garota de olhos brilhantes por sonhos e coração livre de amargura parecia tão diferente da pintura que os anos haviam feito dela.
Incomodava que já não mais se reconhecesse quando posta frente a frente consigo própria.
Estranhar-se a si mesma foi sentimento que a feriu por dentro. Era como se houvese uma fresta minúscula em algum lugar, pela qual sua essência escapasse sutilmente dia após dia após dia após dia.
Sacudiu a cabeça prá se desfazer de seu antigo retrato, e as mãos prá mandar embora as lembranças.
E ao sair de seus devaneios viu que o dia já se clareava, tomando cor e levando a brisa embora. Logo teria seu auge prá em seugida caminhar rumo à vermelhidão de sua morte. Doze efêmeras horas de vida.
Era bonito seu nascer, mas é fato que também enchia os olhos vê-lo desvanescer e carregar consigo tudo o que pôde comportar enquanto existiu.
Então, como era inútil e demasiado amargo lamentar o irreversível, ela afastou-se da janela, foi até a penteadeira e começou a ajeitar os cabelos grisalhos.
Ora essa. Ainda havia muito dia pela frente até a hora do pôr-do-sol.

terça-feira, setembro 20, 2005

"Eu vi quando você me viu.
Seus olhos pousaram nos meus num arrepio sutil.
Eu vi. Pois é, eu reparei.
Você me tirou prá dançar sem nunca sair do lugar
Sem botar os pés no chão, sem música prá acompanhar.
Foi só por um segundo... todo o tempo do mundo.
E o mundo todo se perdeu.
Eu vi quando você me viu.
Seus olhos buscaram nos meus o mesmo pecado febril
Eu vi. Pois é, eu reparei.
Você me tirou todo o ar prá que eu pudesse respirar
Eu sei que ninguém percebeu, foi só você e eu."


E eu que nunca dei bola prá Maria Rita me perdi nessa música. Mais de dez vezes no winamp, com tudo o que ela tem de lenta, arrastada, piegas e, vá lá, até brega.

Eu que sou a inconstância em pessoa. Que posso ser de dia só sorrisos sem causa e à noite a cara da falta de vontade, do desânimo.
Da preocupação ao poucomefodismo é um passo tão curto e sutil que eu nem o vejo. E quando me dou conta já tô lá, perdendo o olhar numa parede branca com o esmalte das unhas arrancado pelos dentes outrora ansiosos.
Puro caos em um metro e setentêtres de ossos e carne e pêlos e pele. É favor ter a boa vontade de não bater com os dedos no vidro, e transportar com cuidado. Parece não, mas é frágil.