segunda-feira, março 13, 2006

Ohnos <<

Passos em regressão a ecoar na bela rua fria. Um fechar-contrário do portão da frente, a porta enfim e as chaves ainda recusando-se a vencer a fechadura - porém não seria agora que até as coisas inanimadas diminuiriam-na.
Atrás da porta não era lugar mais quente que a rua. Havia ali tensão que de tão densa se fazia palpável, tão grande que a comprimia. O lado de dentro e ela prestes a livrar-se do lar que ganhou sem pedir.
Pela sala minúscula as costas adentravam, a cada passo contrário mais pesadas, mais curvas, mais velhas. Os olhos já miravam o chão quando chegaram ao quarto de lençóis rotos e cama pequena demais praquele corpo, franzino contudo mais forte que os músculos de quem costumava deitar-se a seu lado, roncando a preguiça de todo um dia, de toda uma vida. Em sua última olhada àquele corpo gordo a sorver prá dentro de si os ruídos que abafavam o quarto, não conseguiu ser dona de sensação alguma.
Ponta do pé e então o calcanhar; ponta do pé e então o calcanhar, arrastou seu corpo de menina até a cabeceira da cama e lá deixou sua bolsa. De dentro dela, com dedos desajeitados, puxou o pequeno canivete e postou-o sobre o criado-mudo. O Guarda-Roupas a seguir recebia o já puído casaco de grandes botões beges, que deixava ver agora só a camisola de algodão a tapar a pequena silhueta.
De súbito o colchão respondeu ao pouco peso que ali se postava, afundando-se sutilmente, bem como o travesseiro que se amassara com o pesar da cabeça. Antes de cerrarem-se, os olhos fitaram por breves segundos o teto, antecipando o reverso do despertar.
Acontece que ela sonhara que podia ser mulher, que era maior que o teto de seu casebre, que suas mãos não estavam atadas, e ela poderia, sim, ter vontades e idéias. Sonhara que seus olhos eram dum preto vivo, que nunca haviam sido opacados pelas lágrimas. No rosto a pele se livrara daqueles talhos de unhas de dentes de palavras e a boca sabia se abrir em sorrisos.
Acontece que ela sonhara que podia ser gente e finalmente acordou disposta a viver.



[Idéia antiga, que eu não consegui fazer funcionar satisfatoriamente. Ainda assim, taí.]