quinta-feira, julho 09, 2015

Cartografia de Decênio

Agora eu já quase não saio de casa. Fico andando pelos poucos metros quadrados, pisando o chão simples de cerâmica fria com umas meias de pé trocado, se houver uma branca ela sempre vai estar encardida, mais ou menos da cor das paredes. O sofá fica cheio de farelos de pão e carocinhos de pipoca, e em cima da mesa eu deixo uns pacotes de papel pardo com a caixa de algum lanche que eu comi há dois dias. Nunca tem garrafas, eu tenho bebido pouco porque não tem adiantado muito, o efeito demora a aparecer, a espera me deixa entediada e, quando eu finalmente fico bêbada, a euforia já foi embora no último táxi. O cinzeiro sempre tem bitucas do cigarro de outras pessoas, eu acho que elas aparecem prá nos sentirmos sozinhas em par, eu não tenho mais gostado de fumar, acho que a fumaça na casa vazia traz um ar dramático e artificial prá coisas que já estão saturadas desse espírito.

De madrugada, quando todas as luzes do bloco em frente ao meu estão apagadas, eu entro em sites que vendem passagens aéreas e fico pesquisando vôos com partida do aeroporto da Pampulha para qualquer cidade que eu sorteie no dia (existe um método: abrir um livro, descobrir o número que identifica a página, somar seus algarismos, caso seja um dos grandes, e, na barrinha de rolagem do destino, achar a cidade cuja ordenação corresponde à do sorteio), e imaginando uma viagem que tome contornos de vida em outro lugar. Ir voando parece ser a melhor escolha pois evita o problema das pegadas no chão, e assim, sem rastros, nada poderia me perseguir ou me acompanhar no meu recomeço. Crio cartografias sonhadas prá mim mesma, adivinho lugares que eu não vou estragar sedimentando esperança entre as paredes, ou fazendo as lembranças de rejunte dos azulejos.

Quando eu saio de casa, de tarde ou de noite, gosto de ficar observando as pessoas sentadas com a cabeça encostada nas janelas dos ônibus, e imaginar qual a rota que elas vão percorrer dali em diante, tentando traçar uma cartografia agora das pessoas que não conheço, prevendo até qual ponto os caminhos dos passageiros coincidem entre si, e com que força eles se dispersam em pontos específicos. Todas as estradas me parecem muito mais interessantes que a minha própria, que eu já conheço muito mais do que eu mesma gostaria. Quando me vejo no reflexo do vidro da janela em movimento, às vezes me pergunto: será que alguém imagina os meus caminhos e, num golpe de azar, chega até a invejá-los?

Outro dia, correndo rápido, copo após copo atrás da euforia, eu percebi que não quero ser aquela pessoa que fica, dentre todas as outras que vão embora. Essas pessoas tem no fundo do olho a história de quem resistiu ao fracasso dos planos iniciais, como quem diz aos que partem: vocês todos traíram o nosso tratado, mas eu fiquei, eu, guardião da dignidade das promessas. Tive medo de viver com esse brilho amargo no olho, quis ser uma entre todas as outras pessoas que quebram o combinado, aquelas que dizem: mas a nossa promessa envelheceu muito, ficou feia e pesada demais prá que nós aguentássemos carregá-la até o fim. Mas parece que, de tanto ir e voltar pelas mesmas vias, o peso do meu corpo esculpiu valas fundas no calçamento das ruas, e eu, sem perceber, fui me afundando dentro desses buracos, confundindo as minhas histórias com as histórias sedimentadas nesses subssolos, eu e os fósseis que existem por debaixo da cidade, agora eu acho que nós somos feitos da mesma matéria, talvez nós sejamos a mesma coisa, e talvez agora a vala já seja funda demais prá eu conseguir escalá-la de volta ao topo.