quinta-feira, setembro 01, 2005

Clarice. Aurélio.



- Prá mim? Pouco me importa. É que nem aquele poema do Pessoa, sabe qual?
- Tá vendo? É isso que me irrita em você! Essa mania de não levar um assunto adiante, esse seu jeito de sempre sair pelas beradas! "Diálogo de referência" e eu aqui, de mala na mão te dizendo que vou embora. Hunf.

(Ele desvia os olhos do livro que estava em suas mãos e leva-os até a mala postada no chão ao lado de um par de pés. Sobe o olhar calmamente até fixá-lo nos outros dois olhos que estavam na sala.)

- Tô saindo pelas beiradas não. É que realmente não me importa. É sua a vontade de ir? Porta e rua, tchau e bença. Coisa chata é estar-se preso por falta de vontade. Porque, se for daquele jeito que o Camões coloca, a história é outra, cê num acha?

(Ela bufa e faz levantar uma mecha de seu cabelo, que sobe até a altura dos olhos prá, em seguida, voltar rapidinho a seu lugar.)

- Sempre bancando o forte, né? Vai dizer que não te dói aí dentro saber que eu vou e não volto, que lá fora eu me arranjo com outro, que aí eu não vou ser mais só sua.

(Ele pensa por um breve segundo e segue com os olhos ainda no livro.)

- Hum... Só me incomodo de ter de dormir sozinho. Tem feito frio por aqui, sabe. Mas, quanto ao que você fará, é teu o corpo, não meu. Além do que, em relação a ciúme você sabe que eu nunca fui nenhum Bentinho, né?

- Ah não, não. Pára Aurélio. Pára logo, antes que você comece a tagarelar sobre esse tal Dom Masmurro outra vez.

- Masmurro não, Clarice; É Casmurro, com cê.

- Bah! Que seja! Isso só faz diferença prá você, que vive esses livros, que vive dentro deles e esquece daquilo que conquistou aqui, fora das páginas. Você não percebe a gravidade das coisas? Eu sou a sua menina, poxa. Eu te amo, você tem um compromisso a zelar comigo! Não é possível que você seja tão frio!

- Ííí... Lá vem você com esse papo de "Pequeno Príncipe" outra vez. "Tu te tornas responsável por aquilo que cativas e blá blá blá..." Já te falei, Clarice. Isso é livro de Miss, isso é sub-literatura. Cê não pode levar essas coisas tão a sério...

(Clarice olha no fundo dos olhos de Aurélio e sente a raiva tornar rubras as suas bochechas. Um fio gelado se escorre por uma linha que vai da nuca às suas costas, e as pernas deixam de se firmar com precisão. Ela Salta no sofá e, depois de puxar os cabelos, socar o estômago, arranhar o rosto e estapear Aurélio - não sem soltar gritos e urros e uivos - , toma o livro que ele tinha em mãos e começa a rasgar as páginas e jogá-las pro alto, pros lados, pro chão, pra si. Ao se cansar, sem dizer mais palavra, apanha a mala do chão, passa da porta e ganha a rua.)

(Aurélio permanece sentado no sofá, contemplando pelo chão da sala os destroços a que se reduziu seu livrinho de bolso. Suspira pesadamente, e apoia a cabeça na mão direita.)


- É, até que eu gostava dela. Tinha alguma coisa, que eu nunca soube bem o que, mas que me lembrava insistentemente a Lispector...

segunda-feira, agosto 29, 2005

Catártico

Parco porco presto e morto
Posto fosco
Escravo fraco
Frágil a voar por entre correntes duplas e compotas de putas frescas e macias e tenras

Por noites escuras a achar que é gente
Por ruas frias a pensar que é potro
A correr a galopar e tropeçar e tropeçar
Sangue misturado ao vômito e suor e ranho e porra e escória escorre pelas pernas
E a sanidade vai como mijo pela cueca

E se é e se não é
E se pode não balança com as patas na'lgibeira
Embriagado de luar a imaginar o mar que nunca viu nem nunca virá enquanto passagem for coisa de burguês

Mergulha
Em feiúra quando diz que é
Duplo
(e)
Mergulha
Em dobro
Mergulha
Mais de uma vez
Mergulha
(aos montes)

Mas volta seco de pó
Secado em feiúra
Pecado
De impuro de incasto de inútil
Flagelo
Na pele tem talho de ato
Falho sempre ao tentar ser errôneo
Um lado de culpa e outro de dedo que aponta
Busca solução e torna a mergulhar na feiúra de

Achar que estava em Drummond em Bandeira em Rodrigues em Lispector e se viu no espelho
Nu como o mais nu dos nus
Cheio de pêlos que pelos peitos escorriam como se quisessem fugir pelos ombros
(que não suportam um mundo, nem ao menos uma farpa de mundo)

E se fosse homem se fosse forte se fosse alguém
(alguém de algum país de alguma cidade de alguma rua de alguma casa)
Se fosse alguém teria dado cabo ao cabo
Enrolado no pescoço e jogado pela janela

Mas não é ninguém é dos fracos não é macho
(e nem sabe onde é que fica e quem paga e quem habita a casa em que dorme todo dia)
Não há cacife para acabar com coisa nenhuma
Quem dirá com esse martírio que chamam de vida e que empurram como se dele fosse

Infecundo feto de um mundo que gira noite e dia
E as horas passam como o trem que passa todo dia às oito horas a acordar os pobres que foderam a noite inteira
E como tratores esmagam qualquer pio de diferença e brilho
E todo moralismo recai sobre o chapéu do sertanejo deslocado no êxodo de sessenta e seis

E não é apatia falta de propósito ou de tentativa
É que o que é se escancara demais e persegue até no canto mais teu em que se busca esconder
O cotidiano não se solta dos olhos, só salta até eles
Do menino que acata às ordens de se segurar dentro do ônibus, do sopapo que a puta levou no pé do ouvido, das mãos sujas e da mente leve do despudorado
Da vida não se escapa

E pelo tempo a escoar as rugas a nascer e esfarelar ossos e prédios
Por esgotos a cair e levar pura merda com pedaços de milho amarelo-ouro
Comendo banana-maçã e laranja-pêra a imaginar quão doce era a p a m o n h a f r e s q u i n h a p a m o n h a da infância no norte
Com o eterno fardo da vida
Deu o tiro e não morreu

Lara Spagnol e Rafael Romero



[Conversas de Msn no domingo à noite às vezes dão frutos.]