sábado, outubro 19, 2013

Condomínio Estrada Real

Das muitas mazelas de se morar em apartamentos, talvez o pior seja o medo de compartilhar com o vizinho nossos momentos de descuido. Sempre tem a cortina prá se fechar, mas ela é teimosa e, quando o vento bate naquela persiana desgarrada que se prende num pedaço da cômoda, faz a moldura prá gente ver o lado de fora.
Ninguém fala nada, quase nunca. Ninguém canta músicas desafinadas, treina o violão, discute ao telefone. Esse prédio se quer mudo a cada vez que o interfone toca e o porteiro diz que as pessoas precisam dormir. (Eu também preciso, penso, mas o silêncio de vocês me deixa medrosa.)
Em alguma janela um vizinho se descuida e deixa escapar o som de um garfo batendo na borda do prato, talvez um dos sons mais angustiantes do mundo: o som de quem come sozinho, enquanto vê algum programa na televisão (o volume baixíssimo, os apresentadores quase ventríloquos). Ele engole as garfadas de lasanha congelada, a porção para dois separada em uma parte para ele e outra para a frustração - bons solitários comem todos os gramas e choram depois.

De algum outro lugar vêm os gemidos que uma vizinha não conseguiu conter.

O outro vizinho agora lava os pratos sujos de molho branco artificial e farinhento com muita raiva, porque não é obrigado a participar da vida particular de ninguém, porque as pessoas deviam respeitar umas às outras e saber conviver em sociedade, e também não devem ter muito o que fazer na vida prá estarem fazendo esse tipo de coisa a essa hora da tarde, ou será que ninguém mais trabalha, porque também ele nem consegue se lembrar qual foi a última vez que ouviu um desses ao pé do ouvido, talvez tenha sido naquela época em que ele ainda era vegetariano e cozinhava comida de verdade prá dois, e ligava também um som alto prá que ninguém escutasse a alegria que escapava quando eles jantavam juntos e conversavam sobre qualquer assunto aleatório porque qualquer coisa no mundo é assunto prá duas pessoas que se gostam, mas nem nessa época, nem nessa época quando o interfone tocava todos os dias e o porteiro reclamava com sua gagueira e voz chiada que as pessoas precisam dormir e já é a terceira vez só nessa semana, na quarta será advertência, nem nessa época ele se lembrava de ficar exibindo de propósito aos outros a sua felicidade, porque uma coisa que a gente tem que aprender na vida é respeitar o luto dos solitários, que a gente nunca sabe onde vai parar, numa tarde meio quente, almoçando na frente da tv, ouvindo triste o tilintar dos garfos que sobraram daquele faqueiro batendo nos pratos que faziam parte do jogo que foi presente de casamento.