quinta-feira, abril 29, 2010

É sexta-feira e hoje eu não quero terminar a noite jogado na cama curtindo a tediosa vista do teto. Vou pôr os pés na rua.
Liguei meu microsystem - nada mais velho que esta porcaria - e procurei aquela coletânea boa dos Smiths, prá ver se me animava com a franga solta do Morissey. Não, There is a light that never goes out é demais prá essa noite, já basta ter curtido uma semana inteira de fossa profissional (alternei Joy Division e Leonard Cohen, e, modéstia à parte, não são muitos os que sobrevivem a sessões como estas).
Mudo logo prá Ask Me e vou dançando ridículo pro banheiro. É claro que o meu cabelo e as minhas costelas me furando a pele não têm jeito, mas, talvez se eu passar a camisa hoje, talvez se eu pentear o cabelo mais pra frente, talvez hoje ninguém ligue para os outros detalhes.
Amarro os tênis e This Charming Man me dá vontade de abrir os botões da blusa e desmunhecar com uma flor no bolso da calça, mas há de se endurecer e perder a ternura, às vezes.

Pela rua, escolho hoje um bar que toca The Doors, a melhor opção entre o que ecoa das caixas de som postas nas calçadas próximas. Peço um gim sem tônica, porque estou meio afoito, e acendo meu último cigarro picado no isqueiro do balcão. Não há ninguém conhecido por aqui e estou meio envergonhado, mas talvez com uma mão no bolso, talvez cerrando os olhos a la James Dean entre as tragadas, talvez hoje ninguém perceba meu desconforto.
Termino o tal gim - coisa horrível, beber perfume seria menos desagradável - e percebo que caí na velha pegadinha da Jukebox: é bom não esquecer que depois de Light My Fire o nível nunca sobe. Still Loving You arranhando as caixas de som e eu sinto tanta vergonha da distorção desta guitarra.
Sentado, agora, após cinco gins, dois cigarros e nenhuma palavra dita, repenso a minha insistência em forjar para mim mesmo esta vida social. Ninguém saberia me divertir tanto quanto Billy Idol cantando Dancing with myself dentro do meu quarto. Este sim, um pretenso bom amigo, apesar das roupas de eterno adolescente.
Rio comigo ao imaginar o que diriam as caixas do supermercado quando Billy e eu fôssemos fazer nossa compra para o fim de semana (algumas vodcas e suco de laranja, sou um cara clássico às vezes).
Minha cabeça já preparava nossa primeira dose de Hi-Fi quando um acorde meio dissonante chama minha atenção para a Jukebox. "I am the sun, I am the earth, all that shyness that is criminarly bulgar..." Tudo o que eu tentei deixar escondido embaixo da cama me atacando publicamente agora, subindo pelo estremecer leve do chão e entrando pelos ouvidos. Meus dias sempre sozinhos mas forçosamente felizes desfilando ao som de cada nota, cada sílaba por mim tão conhecida me desafiando. Como se travando uma briga, confronto a caixa de som e me deixo responder por Morissey: "You shut your mouth, how can you say I go around things the wrong way?". A parte do I am human and I need to be loved eu tive vergonha de cantar em voz alta, porque pensei já estar chamando atenção demais. Minto, me calei porque, na verdade, em qualquer lugar e situação do mundo um ser humano tem vergonha de cantar tamanha afetação, por mais que ela seja verdadeira.
Ironicamente, foi ao ouvir uma de minhas músicas preferidas que tive o impulso mais babaca de minha vida até ali. Poderia ter apenas puxado a tomada da máquina, ou ter simplesmente pago a conta e ido embora, mas a voz de Morissey parecia acender em mim um holofote iluminado pela vergonha, e foi dele que eu tirei coragem para arremessar meu copo de gim na tela do aparelho, trincando o vidro da frente, não fazendo calar o som, me pondo prá correr dali como se não houvesse amanhã.

Mais tarde, fitando o teto com os olhos embaçados, rindo de canto de boca do drama afetado e verdadeiro que fazemos com nós mesmos, penso que, se eles cantam mesmo a minha vida, e se pelo timbre deles é tão mais bonito, talvez não valha a pena ir lá fora prá ver como é que é. Melhor esperar, deitado, por um novo single das bandas que já acabaram.

sexta-feira, março 12, 2010

Invictus - William Ernest Henley

Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll.
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.


[Se deu força pro Mandela, vai dar força prá mim também.
e um esboço de tradução BEM porco, porque eu não sou nem do inglês nem aluna do Theodoro, então eu posso avacalhar.]

Pela noite negra a me cobrir,
Como o abismo que os pólos liga,
Eu agradeço, ao deus que existir,
Por minha alma nunca vencida.

Nas garras bárbaras do destino
Eu não fraquejei ou fiz chorar.
Sob as duras pancadas da sorte
Minha cabeça sangra, sem se curvar.

À parte deste mundo de ira e lágrimas
Nada se tece; da solidão o horror,
E ainda assim os anos que me ameaçam
Não veem e jamais verão meu temor.

Ainda que estreita a travessia,
Ainda que castigado o que restou,
De minha alma, a capitania:
De meu destino sou senhor.
]

sexta-feira, janeiro 15, 2010

de novo

[em casa sozinha, ouvindo Leonard Cohen, fazendo arroz empapado e lendo textos antigos. Tive vontade de repostar esse, sem a frase final, que agora, quase 4 anos depois, eu percebi como era inútil.]

Pablo - Cora


Acho até que aprendi a gostar desse barulho indefinível e humano que fazem as pessoas quando são muitas, dadas as tantas vezes em que ele me foi companhia enquanto eu esperava Pablo apontar de algum canto, atrasado como sempre, e já sei que ela fará aquele bico com os lábios, aquele que um dia cheguei até a achar engraçadinho e que hoje só me faz questionar porque ainda levo isso a frente.

-‘Sinceramente não sei.’, eu digo e retorço os lábios pra que ele perceba que me cansa estar sempre por sua conta, pra que ele entenda que tanto me faz o que jantaremos e prá que ele, se for isso aqui menos bobo, atine para o fato de que, por deus, não fica bem com essa camisa gola pólo eu até vesti pra não ter de ler nos olhos de Cora a censura muda que por vezes ela faz de minhas roupas.

Mas já não há jeito de agrada-la e a noite será de poucas palavras depois e o garçom chega para receber nossos pedidos. Ele erra a pronúncia do francês ao pedir o prato, como sempre, e eu disfarço o constrangimento com um sorriso falho, que só faz, na verdade, traduzir a pena que sinto pela sua burrice, burrice! e eu me castigo internamente por não ter dado a ela atenção quando tentava-me ensinar, ainda em tom de brincadeira, a pronúncia daqueles “ôs”, “ês” “tré´s” que, da boca dela fluíam tão naturalmente e me embaraçavam todo esse silêncio entre nós dois... eu tento lembrar quando é que foi que se instalou com essa força, como se nunca tivesse sido cortado por palavras. Tento me lembrar quando foi que parei de ver nos erros de Pablo a graça de sua imaturidade.

Ele me parece agora ter deixado só o corpo por estas bandas, pois não me mira os olhos enquanto me pergunta “Como foi o dia?” e as palavras pulam automáticas de minha boca, na tentativa já fracassada de puxar algum assunto e mandar pra longe da mesa essa sensação de que só estamos aqui, travando este combate surdo contra nossas reais vontades, porque, como namorados, isto não seria mais que nossa obrigação.

Cora me diz que “foi bom, e o teu?” é o máximo que consigo responder, afundando-me no ridículo da trivialidade, e antecipando aquele silêncio instalar-se entre nós outra vez, e apontar que já não temos mais o que dizer um para o outro, e eu sinto-me entristecer por perceber que, assim como Cora já não me é necessária, para ela eu também não o sou.

O garçom trás o nosso jantar e comemos, tão maquinalmente como, horas depois, ela sente o meu peso sobre seu corpo já me é tão indiferente que tenho vontade de que ele acabe logo para que eu vire-me pro meu lado da cama e finja dormir, as frases amargas que eu nunca direi a Pablo querendo-me saltar à boca fechada, eu não falarei a Cora sobre o nosso fim, que não há porque mostrar a ela aquilo que qualquer um vê.