quarta-feira, dezembro 16, 2015

Verde-musgo

Sempre que mencionavam a solidão do homem moderno eu desenhava mentalmente a imagem de um sujeito magro, morando em um apartamento minúsculo e antigo (tanto quanto podem ser pequenos os apartamentos antigos, já que as kitnets contemporâneas comprovaram que é possível morar em qualquer lugar onde caiba um ser humano na horizontal), vestindo roupas limpas com a dignidade de quem tem uma muda para cada dia da semana, esparramado em uma poltrona encardida, passando levemente os dedos sobre as espumas que escapam da engenharia das molas que um dia fizeram daquele assento um descanso aprazível.
Imaginava as famílias sorrindo pela luz esverdada da tv ferindo o escuro da sala acarpetada em marrom, os miasmas das risadas dos outros interrompidas pelas garfadas no almoço posto impecavelmente à mesa batendo na fronte do sujeito que contempla a novela sem mover os olhos. É imprescindível que as janelas estejam fechadas há alguns dias, e que um cheiro de sopa misturado com cozido de carne tenha se agarrado nos armários de madeira da cozinha. Tudo nessa casa deve estar mais ou menos limpo, à exceção das desorganizações recentes, a pia abriga 3 dos 4 pratos de cor âmbar que compõem o jogo de jantar.
O riso das crianças, o sino da igreja, as buzinas dos carros, o barulho que as chaves fazem antes do ranger das portas vizinhas, todos estes entram pelas frestas e, ultrapassando o limiar das portas, janelas e ralos do banheiro e da pia, impregnam a cada dia mais os azulejos e as infiltrações do teto com o lodo verde da obrigação. 

Eu durmo e acordo com as cortinas do quarto abertas, assim como as janelas, que são de vidro e correm em ambas as direções pelo trilho prateado que se afixa numa parede branca, assim como todas as paredes do meu apartamento. Quando pude escolher, comprei guarda-roupas, cômoda, prateleiras, mesa e pisos de revestimento brancos. Acendo todas as luzes da casa às 6 da tarde no horário normal e às 7 da noite no horário de verão, e respiro longamente quando, em dezembro, os dias duram até pouco antes do jornal nacional. Tenho mais peças de roupas do que preciso e algumas das vezes a pia fica lotada de vasilhas, porque eu só cozinho quando tenho companhia. Troco a ração do gato duas vezes por dia, mas não me demoro muito observando-o dormir. Já são 3 anos desde que acompanhei a última novela das 9, e de lá prá cá tenho assistido seriados que falam sobre as crises que perpassam as pessoas antes e durante os 30 anos. É tudo muito cotidiano e real, os personagens escutam as mesmas bandas que eu, se decepcionam às vezes com o que tomavam como garantido, falam sobre feminismo e, no fim, viajam tentando encontrar a si próprios. Limpo a casa toda semana, e faço uma faxina mais pesada todo mês. Esfrego com uma buchinha e um pouco de cloro todo o lodo verde que gruda no rejunte dos azulejos do banheiro e, com uma vassoura de cabo comprido, limpo o musgo das infiltrações do teto. 

Ontem, enquanto trabalhava em um texto, ouvi o sino da igreja que me avisa às 6 da tarde que é hora de acender as luzes. O sino ontem me pareceu um pouco mais insistente que o normal, acredito que tenha se estendido por mais alguns minutos que os 2 habituais. Esperei que as badaladas terminassem prá que eu me levantasse e fosse cumprir meu pequeno ritual. Junto com o soar, entraram pelas janelas escancaradas balançando as cortinas também abertas os gritos das crianças do prédio vizinho, os anúncios musicados gritados pelos alto-falantes que os carros carregavam pela rua, o tilintar das 90 chaves de cada um dos moradores do condomínio e o ranger subsequente das portas sem graxa nas dobradiças, os latidos dos cachorros o piado dos pardais o arrulho dos pombos a britadeira que come o chão do apartamento superior a água jorrando do borrifador dos jardins o filme pornô que o vizinho ao lado assiste em todas as madrugadas no máximo volume sem fone de ouvido interfones avisando chegadas telefones agudos insistindo em serem atendidos todo o som do bairro entrou pelas grandes frestas do meu apartamento junto com as badaladas lamacentas do sino da igreja, manchou todo o meu branco de um marrom viscoso, subiu até o teto, fez penderem as cortinas em cima das janelas, transformou todo o porcelanato na pior das carpetarias de cor bege. 

Então hoje, quando acordei, a lama tinha ido embora e deixado em seu lugar o musgo esverdeado por todos os cantos da casa. 


quinta-feira, julho 09, 2015

Cartografia de Decênio

Agora eu já quase não saio de casa. Fico andando pelos poucos metros quadrados, pisando o chão simples de cerâmica fria com umas meias de pé trocado, se houver uma branca ela sempre vai estar encardida, mais ou menos da cor das paredes. O sofá fica cheio de farelos de pão e carocinhos de pipoca, e em cima da mesa eu deixo uns pacotes de papel pardo com a caixa de algum lanche que eu comi há dois dias. Nunca tem garrafas, eu tenho bebido pouco porque não tem adiantado muito, o efeito demora a aparecer, a espera me deixa entediada e, quando eu finalmente fico bêbada, a euforia já foi embora no último táxi. O cinzeiro sempre tem bitucas do cigarro de outras pessoas, eu acho que elas aparecem prá nos sentirmos sozinhas em par, eu não tenho mais gostado de fumar, acho que a fumaça na casa vazia traz um ar dramático e artificial prá coisas que já estão saturadas desse espírito.

De madrugada, quando todas as luzes do bloco em frente ao meu estão apagadas, eu entro em sites que vendem passagens aéreas e fico pesquisando vôos com partida do aeroporto da Pampulha para qualquer cidade que eu sorteie no dia (existe um método: abrir um livro, descobrir o número que identifica a página, somar seus algarismos, caso seja um dos grandes, e, na barrinha de rolagem do destino, achar a cidade cuja ordenação corresponde à do sorteio), e imaginando uma viagem que tome contornos de vida em outro lugar. Ir voando parece ser a melhor escolha pois evita o problema das pegadas no chão, e assim, sem rastros, nada poderia me perseguir ou me acompanhar no meu recomeço. Crio cartografias sonhadas prá mim mesma, adivinho lugares que eu não vou estragar sedimentando esperança entre as paredes, ou fazendo as lembranças de rejunte dos azulejos.

Quando eu saio de casa, de tarde ou de noite, gosto de ficar observando as pessoas sentadas com a cabeça encostada nas janelas dos ônibus, e imaginar qual a rota que elas vão percorrer dali em diante, tentando traçar uma cartografia agora das pessoas que não conheço, prevendo até qual ponto os caminhos dos passageiros coincidem entre si, e com que força eles se dispersam em pontos específicos. Todas as estradas me parecem muito mais interessantes que a minha própria, que eu já conheço muito mais do que eu mesma gostaria. Quando me vejo no reflexo do vidro da janela em movimento, às vezes me pergunto: será que alguém imagina os meus caminhos e, num golpe de azar, chega até a invejá-los?

Outro dia, correndo rápido, copo após copo atrás da euforia, eu percebi que não quero ser aquela pessoa que fica, dentre todas as outras que vão embora. Essas pessoas tem no fundo do olho a história de quem resistiu ao fracasso dos planos iniciais, como quem diz aos que partem: vocês todos traíram o nosso tratado, mas eu fiquei, eu, guardião da dignidade das promessas. Tive medo de viver com esse brilho amargo no olho, quis ser uma entre todas as outras pessoas que quebram o combinado, aquelas que dizem: mas a nossa promessa envelheceu muito, ficou feia e pesada demais prá que nós aguentássemos carregá-la até o fim. Mas parece que, de tanto ir e voltar pelas mesmas vias, o peso do meu corpo esculpiu valas fundas no calçamento das ruas, e eu, sem perceber, fui me afundando dentro desses buracos, confundindo as minhas histórias com as histórias sedimentadas nesses subssolos, eu e os fósseis que existem por debaixo da cidade, agora eu acho que nós somos feitos da mesma matéria, talvez nós sejamos a mesma coisa, e talvez agora a vala já seja funda demais prá eu conseguir escalá-la de volta ao topo.

segunda-feira, março 16, 2015

Vigília

Vamos conversar na minha noite de insônia, como se a gente ainda se falasse. Tá tudo bem, eu não tô triste, eu só quero saber o que você anda ouvindo, o que você acabou de ouvir? Você vai pesquisar em algum lugar da sua memória uma música que diga algo que caiba entre a sutileza de um recado e de um descaso. Eu gosto dessa banda, mas essa música eu nunca ouvi, vou te dizer. A música provavelmente será qualquer coisa, mas antes mesmo de dar o play vou procurar a letra no google, e inventar prá ela um segredo que mora entre um recado e um descaso.

Você na verdade nunca prestou atenção no que é que eles cantavam, mas gosta da distorção que rola na guitarra antes do refrão, você achou que eu pudesse gostar também, talvez eu dançasse um pouco sozinha no meu quarto, se não estivesse deitada na mesma posição há quatro horas esperando entrar a primeira fresta de luz pela cortina prá que, aos poucos, meu coração recobre seu ritmo, minha cabeça desacelere e eu consiga dormir.

Ontem a gente comprou umas garrafas e foi prá uma festa estranha, no fim da noite eu me deitei no chão e você se deitou também, a gente ficou tonto o suficiente prá esvaziar a cabeça e passar alguns minutos que pareceram horas observando um ponto na parede enquanto uma música parecida com essa flutuava em volta da gente. Acho que semana passada gastamos o dinheiro que não tínhamos numa festa horrível mas no set do dj tinha uma música e o timbre do vocalista soava idêntico à voz da mulher que tá cantando agora, eu tirei meus sapatos e dancei bastante, derrubei a minha gin-tônica na sua blusa, você sorriu de olhos fechados, as luzes verdes cortavam sua camisa branca na vertical ou na horizontal. Depois a gente desceu as escadas e topou com a brisa de quando o dia tá amanhecendo e o céu ainda tá branco, quase se confundindo com o cinza do alto dos prédios, o último segundo da fresca da madrugada. A gente andou até uma praça e deitou num quadrado de grama, eu pus a cabeça no seu ombro e pensei que tudo bem dormir ali, se só por alguns segundos.

Acordei alguns anos depois.

Se eu dormir, amanhã vou acordar cantarolando o refrão da música que ouvi na insônia passada. Parece que foi ontem, eu sinto as costas molhadas e coçando da mistura de orvalho e grama, eu acho que foi ontem, a minha cabeça dói um pouco, eu não sei se é culpa do gin-tônica dos anos passados ou se é só a luz forte do computador dentro dum quarto escuro, meus pés também estão cansados, houve dias em que eu dancei, mas eu não sei mais se em sonho ou em bebedeira, é que a insônia você sabe como é, é como se você estivesse sempre consciente de que está dormindo, quando na verdade está acordado, não existe um limite visível entre o sonho e a vigília, porque talvez seja apenas a eterna vigília que aos poucos dá seus sinais de delírio, é que com ela é assim, com a privação do sono.



Dormi e sonhei que dormia.

quarta-feira, janeiro 28, 2015

quiromancia dos bêbados

Ontem, na quiromancia dos bêbados, me disseram que vou ser rica, viver muito e ter dois filhos. Mas na mão dos outros dava prá ler isso tudo e umas coisas sobre relacionamentos, casamentos, namoros, e eu achei estranho a minha predição não ir até essa parte.

É que na sua palma, Lara, as linhas tão todas bonitas, claras e bem explicadinhas, mas tem uma coisa estranha: você não tem a linha do amor na mão.

Não que o leitor de mãos fosse um respeitável místico das previsões,  e nem que eu não seja cética, não que a gente acredite em destino, ou no poder não científico que os riscos da nossa mão teriam de ditar o que seríamos, não que a gente acredite que esses talhos possam ter poder superior às nossas relações sociais e ao conjunto de causas e consequências que fazem as coisas darem certo ou errado, não que a gente se fie na sorte do acaso, mas também não é como se a gente só acreditasse naquilo que pode provar, não é como se nunca tivéssemos desconfiados das coincidências, não é como se passássemos de peito aberto debaixo das escadas da rua e viajássemos tranquilos quando só sobra a poltrona 13, não é como se nunca tivéssemos atribuído àqueles acontecimentos importantes uma aura de magia, prá ver se, ao menos às vezes, as coisas extrapolam o despropósito do cotidiano e pareçam, ainda que de longe, a sombra das nossas ficções preferidas, quero dizer, não é como se a gente não se afetasse nunca.

Por coincidência ou não, ontem, depois da quiromancia dos bêbados, nós tomamos 30 garrafas de cerveja, e talvez lá pela décima nona eu tenha pensado: se em alguns anos continuar não dando certo eu vou comprar um canivete e abrir eu mesma a linha do amor mais bonita de todas na palma da minha mão direita que é prá não dar ousadia pro destino.