quinta-feira, dezembro 22, 2005

[Pro 10º Concurso Maldito, de tema: Decadência.]

Mise en Abyme

Demoro-me um pouco a largar a cama hoje. Mais que o pavor de enfrentar o frio que deve fazer fora do edredon, eu quero prolongar este estado gostoso de quase realidade em que me encontro. Sonho lucidamente, com ânsia de desfrutar todas as minhas ilusões adormecidas, porque sei que não tarda e eu escutarei o pí pí pí do despertador entrar dentro dos meus miolos, e trazer-me da forma mais cruel possível ao meu cotidiano.
Um contratempo em meus devaneios sonâmbulos desperta-me por completo, e, ainda meio confuso, vejo o teto tomar forma acima de mim. Aquele lustre sem graça a proteger a lâmpada apagada, algumas falhas na pintura; infiltrações.
É estranho mas posso ver-me ali, bem ali no teto; o sono fazendo-me débil, as mãos estapeando o pobre relógio prá que ele pare com aquela cantoria matinal irritante. Coço os olhos, bocejo - e que diabo de boca grande eu tenho, cruzes - e levanto finalmente. Arrasto-me ao banheiro e do banheiro até a cozinha, até o café quente descendo e queimando a goela e o pão esfarelando-se sob minha camisa. É manhã.
Caminho, irritado com a gravata apertada no pescoço, até o ponto de ônibus, e espero minutos que em minha cabeça transformam-se em horas maçantes, de gente chata sorrindo bom humor matinal e comentando sobre o tempo. Sinto ódio, sinto pressa, sinto repulsa, pena de mim, e ódio outra vez. Todo aquele trajeto que se faz tão mesmo prá mim todos as manhãs. As pessoas que me inspiram pensamentos iguais, dia após dia. A porta do escritório, nunca diferente. O tocar do telefone de que eu me recordo tão bem, meus atos que em nada me surpreendem, meus aborrecimentos de causa sempre mesma. Fins de expediente marcados por frases mecânicas, já gravadas em minha cabeça. E a volta prá casa, a gravata que me incomoda, as pessoas que riem cansaço, a minha irritação. A porta de casa, nunca diferente. O barulho da t.v e aqueles rostos, oh céus, saídos duma fábrica de produção em série. Meus olhos ardendo sono quando ainda estou no sofá, me indicam que tenho só o tempo suficiente para trocar a roupa e ajeitar-me na cama, antes que o sistema desligue-se automaticamente. Sei que não tarda e eu escutarei o pí pí pí do despertador entrar dentro dos meus miolos, e trazer-me da forma mais cruel possível ao meu cotidiano.
Inevitavelmente penso no tempo que escorre por entre esses meus dias, que se colocados frente a frente, refletiriam-se sem ruído algum; feito espelhos.
Procuro em agonia, por entre aquelas manchinhas de reboco mal feito, aquilo que roubou de mim o que um dia eu tive de essencial. Eu quero a resposta prá minha pergunta e um remédio prá dar jeito nessa minha decadência, que se afirma na estaticidade das coisas. Porque enquanto tudo vai sob controle e nada de novo acontece, eu vejo a minha vida descer, degrau por degrau, essa escada insossa da mediocridade, e sinto a idade querer me pesar a consciência. Que me deram uma vida a ser escrita, e dela eu fiz uma folha em branco, tão significativa quanto este teto de apartamento alugado, que agora me fita em acusação crescente e me faz querer ver despencar toda essa imensidão alva sob a lacuna que eu sou.

Mas o relógio precipita-se, e inicia sua cantoria matinal irritante. Eu coço os olhos, bocejo, e levanto finalmente.