terça-feira, novembro 19, 2013

Fazendo as pazes

Há 9 anos atrás eu conheceria minha melhor amiga não humana, não mãe, não felina. Tem gente que precisa ir prá longe prá se deslumbrar, prá ver como é bom ser atingido pelos tapas de luva do mundo e aprender a responder, mas eu andei só alguns quilômetros na pior estrada do Brasil, e topei com você. Foi o que bastou prá eu nunca mais querer voltar.
Você não é especialmente linda, nem de dia nem de noite, não tem nenhum ângulo incrível que eu morra prá mostrar pros meus amigos a quem te apresento, mas talvez o seu charme apareça mesmo em te conhecer, pegar na sua mão, entrar em lugares estranhos, subir escadas ou rampas, pedir uma cerveja e espreitar do alto de uma sacada seus pedacinhos de beleza - você finge modéstia mas tem muitos deles.
Eu sei que brigamos por um tempo, você me bateu de um jeito escroto e me deu um olho roxo que até ontem tava amarelado. Mas eu te perdôo, mesmo sabendo que você é o tipo de amiga que não aceita desculpas, porque eu sou sempre a boba da história, e me peguei num aperto agora pensando que, na verdade, eu não quero nem nunca quis sair fora de você. Meu humor geminiano combina com as suas contradições climáticas, meu coração besta é tão vasto quanto você, a gente abriga em nós as melhores pessoas desse mundo.

Olhei no espelho agora, e meu roxo no olho sarou, beagá. Dá aqui um abraço, nós somos melhores amigas de novo.



sábado, outubro 19, 2013

Condomínio Estrada Real

Das muitas mazelas de se morar em apartamentos, talvez o pior seja o medo de compartilhar com o vizinho nossos momentos de descuido. Sempre tem a cortina prá se fechar, mas ela é teimosa e, quando o vento bate naquela persiana desgarrada que se prende num pedaço da cômoda, faz a moldura prá gente ver o lado de fora.
Ninguém fala nada, quase nunca. Ninguém canta músicas desafinadas, treina o violão, discute ao telefone. Esse prédio se quer mudo a cada vez que o interfone toca e o porteiro diz que as pessoas precisam dormir. (Eu também preciso, penso, mas o silêncio de vocês me deixa medrosa.)
Em alguma janela um vizinho se descuida e deixa escapar o som de um garfo batendo na borda do prato, talvez um dos sons mais angustiantes do mundo: o som de quem come sozinho, enquanto vê algum programa na televisão (o volume baixíssimo, os apresentadores quase ventríloquos). Ele engole as garfadas de lasanha congelada, a porção para dois separada em uma parte para ele e outra para a frustração - bons solitários comem todos os gramas e choram depois.

De algum outro lugar vêm os gemidos que uma vizinha não conseguiu conter.

O outro vizinho agora lava os pratos sujos de molho branco artificial e farinhento com muita raiva, porque não é obrigado a participar da vida particular de ninguém, porque as pessoas deviam respeitar umas às outras e saber conviver em sociedade, e também não devem ter muito o que fazer na vida prá estarem fazendo esse tipo de coisa a essa hora da tarde, ou será que ninguém mais trabalha, porque também ele nem consegue se lembrar qual foi a última vez que ouviu um desses ao pé do ouvido, talvez tenha sido naquela época em que ele ainda era vegetariano e cozinhava comida de verdade prá dois, e ligava também um som alto prá que ninguém escutasse a alegria que escapava quando eles jantavam juntos e conversavam sobre qualquer assunto aleatório porque qualquer coisa no mundo é assunto prá duas pessoas que se gostam, mas nem nessa época, nem nessa época quando o interfone tocava todos os dias e o porteiro reclamava com sua gagueira e voz chiada que as pessoas precisam dormir e já é a terceira vez só nessa semana, na quarta será advertência, nem nessa época ele se lembrava de ficar exibindo de propósito aos outros a sua felicidade, porque uma coisa que a gente tem que aprender na vida é respeitar o luto dos solitários, que a gente nunca sabe onde vai parar, numa tarde meio quente, almoçando na frente da tv, ouvindo triste o tilintar dos garfos que sobraram daquele faqueiro batendo nos pratos que faziam parte do jogo que foi presente de casamento.

quinta-feira, junho 06, 2013

um relógio humano.

Todos os dias em que vou pro trabalho eu encontro um cara no meu caminho.
Ele é magro e comprido, muito bem vestido prás 8 da manhã, e tá sempre carregando um livro de Game of Thrones na mão. Todos os dias a gente se olha com o mesmo olhar de reconhecimento - de quem revê uma constância, apenas, e não um amigo ou um interesse.
Quando o vejo no fim rua sei que estou a tempo. Se nos cruzamos em cima do viaduto sei que vou me atrasar (porque as pessoas normais tem coincidências que eu deveria almejar).
Esse cara é meu relógio humano. Penso que se um dia conversarmos nos sujeitaremos às punições reservadas àqueles que tentam modificar ou adivinhar o próprio destino. Gosto de achar que ele também sabe disso.
Apesar do temor imenso, me agrada essa chance de bulir com o meu tempo.
Talvez um dia eu dê bom dia, prá dar um peteleco no curso das coisas, prá ver se vira a minha sorte.

quinta-feira, abril 11, 2013

Internet, I love you but you're bringing me down.

Em algum canto obscuro da internet nós fomos codificados em sequências binárias e agora isso é tudo o que nós fomos. Num passado resumido a uma setinha que varre a caixa de e-mails em retrocesso a totalidade se partiu em 0 e 1, em sim e não, em presença e ausência, em somos e não somos.
O tempo que nos definia passou agora a ser um arquivo no qual vez ou outra um subject mais ameno bóia em meio à enxurrada de promoções de sushi, depilações a laser e backups de artigos acadêmicos, e é só isso.

Penso que a nossa modernidade ainda é muito desajustada; por sua síndrome de Funes ela quer guardar tudo, mas não sabe reter com o respeito devido os nossos amores passados, as nossas velhas histórias. Em sua arrogância, ela não permite que pintemos o passado com as mágoas e as glórias que nos convém; o que retorna prá nós a cada vez que afundamos no hábito doente de nos vasculharmos são arrobas desajustadas e textos escancarados (ali até os erros de digitação, até a pressa no tom).

Na promessa infalível e certeira dos códigos binários ou se é ou não se é. E a isso eu prefiro a minha memória casmurra, que inquere, manipula, tapeia, finge, e se frustra, no fim, ciente de sua empreitada falha: não vamos nunca recompor o que foi nem o que fui.

terça-feira, fevereiro 19, 2013

me mate que eu sou muito vivo.

Tenho defendido a tese de que você pode ser o que quiser nessa vida, desde que seja vivo. Se for rir, ria com todos os seus dentes cariados, tortos e cheios tártaro. Não ponha a mão na frente da boca quando gargalhar, fale de boca cheia de vez em quando porque timing é uma coisa importante na vida, levante a voz, sim, deixe o sangue subir a cabeça, fale atravessado, sente na calçada suja, depois é só bater na bunda na hora que levantar que a poeira sai. De vez em quando fique bêbado, dance achando que é a pessoa mais desenvolta do mundo e depois morra de desgosto vendo como você saiu feio nas fotos. Abrace apertado mesmo que esteja meio suado, as pessoas merecem saber que você gosta delas estando limpo ou sujo. Pegue o garfo que caiu no chão e coma com ele de volta, compartilhe sua colherzinha de sorvete com o mendigo, você é uma porra de um ser humano e não vai morrer por conta de meia dúzia de bactérias, e se passar mal é porque cê já tá meio morto e nem anticorpos tem direito, vai te fazer bem  dar umas idas ao banheiro, vai te tornar resistente. Fale o que você pensa mesmo que sua opinião seja ridícula, mesmo que você não tenha certeza, mas não sente na mesa de bar com um meio sorriso na cara que assim até o saleiro tá sendo mais importante que você. Faça valer a dor das entranhas da sua mãe nem que seja de vez em quando, saia da sombra e ponha o dedo na cara dos outros, depois você pode pedir desculpas porque uma parte de você tá sempre errada, mesmo. Gaste os bicos dos sapatos em topadas na calçada, xingue quando bater o dedinho na quina do fogão, mande à merda os carros que jogam água na sua calça nova em dia de chuva, tropece, caia no chão às vezes, dê risada do seu ridículo e chore amargamente suas pequenas derrotas diárias. Faça um brinde a qualquer coisa no bar, não tenha medo de parecer estúpido - porque uma grande parte de você é e sempre será estúpida - defenda seus pensamentos como se fosse uma gata recém-parida, mude de lado quando estiver errado, faça valer a dor das entranhas da sua mãe, de novo, faça valer anos e anos de evolução que culminam na sua forma atual, faça valer a chance de estar vivo e entender o que é isso, pelo amor de deus, seja um pau no cu, seja um imbecil, seja qualquer coisa, mas não seja uma planta nessa vida.

sexta-feira, fevereiro 01, 2013

Fevereiro.

Em janeiro cada decepção que me voa na cara é uma batida de tambor que eu ensaio prá tocar em fevereiro. Eu, que não tenho ritmo e nunca bati a mão com força no couro de verdade, espero o carnaval com tanta força que vejo as portas do meu armário às vezes se estufarem e se fecharem de volta num compasso marcado, até derrubar daquela prateleira lá de cima - a prateleira que todo guarda-roupas tem, onde se guarda os restinhos puídos de felicidade - as perucas, as máscaras, os poucos confetes que resistiram ao ano passado.

Fevereiro é o mês de se esperar um messias profano, de barba comprida e batom mal passado, rindo da graça irônica que mora no alívio de se ser outra pessoa por algumas horas. É o mês de se render a todo o interdito, de desafiar a saúde e a sanidade, de achar a felicidade numa fantasia mal justificada, num bloquinho desafinando na rua.

Por 4 ou 5 dias, então, não importa, o jogo é o brinquedo de suspender o tempo, enfiando os relógios nos copos d'água e torcendo prá que eles não sejam à prova de nada. A alegria adiada de um ano inteiro vai ter que caber na sexta-sábado-domingo-segunda-terça, tornando a ser varrida pros cantos junto com os cacos de todos os outros 360 dias de cinzas.

Fevereiro já chegou. Agora só falta mesmo chegar o profeta bêbado, repetindo prá gente durante cinco dias aquela previsão linda das ciganas falsas: está tudo certo e você vai ser feliz.