segunda-feira, julho 21, 2014

Sujeito de sorte

Ontem, quando entrei no meu quarto prá dormir e tive que afastar com o pé uma mala duas sacolas de roupas aleatórias uma saia amarela de filó três garrafinhas de água pela metade uma pasta de textos alguns livros e sei lá mais o que do caminho de dois passos que leva da porta até a cama, eu suspirei e falei que queria tanto melhorar. Será que um dia a gente vai conseguir, você me perguntou. Eu falei que sim porque ano passado eu morri mas esse ano eu não morro.
Ano passado é sempre o dia anterior, calcado nas promessas de melhora assim que eu desperto e sinto que uma lança atravessou a minha cabeça pela altura do olho - o corpo tremendo um pouco, às vezes, a boca meio seca, os lábios se rasgando um pouco prá rir do absurdo e do excesso, se abrindo como as comportas que de vez em quando se abrem prá gente não ser inundado pela nossa reserva de frustrações.
Ontem eu morri mas hoje eu não morro, é tudo o que penso quando driblo as expectativas e levanto da cama, a parede ainda levemente móvel - sou grande mas não sou duas, gasta um pouco prá metabolizar toda essa confusão - vou até a segunda gaveta do armário da cozinha e quase que no automático tomo dois remédios com água e muita esperança de que esse não será um dia perdido, é o que penso quando entro no chuveiro e encaro a água fria, as ensaboadas meio desesperadas, quando ponho a roupa mais limpa do guarda roupa e tento recompor a integridade física, quando lembro de algum flash que tinha ficado escondido num canto da minha memória e coro de vergonha - mas só de leve -, lembro que até ando com minhas contas em dia, que não faltei a nenhum compromisso profissional, que não feri ninguém, que só quebrei objetos materiais e dei um roxo no meu cotovelo, não é tão grave assim, eu tenho sangrado demais, tenho chorado prá cachorro, tenho saúde e os exames de sangue tão em dia, é só diversão, prá quê se culpar tanto, o ano tem 365 dias prá eu morrer e acordar no dia seguinte com a certeza de que dessa vez eu não morro, até esmorecer e fraquejar no próximo convite, porque sempre é hora de adiar a limpeza do quarto, o enfrentamento dos próprios problemas, a habilidade de andar com as próprias pernas com a cara limpa.
Mas ainda restam as manhãs em que eu só acordo ao invés de ressuscitar, e vejo nas manchas da parede do meu quarto um futuro alguma coisa próspero, no qual se desenha meu ano de sobrevivência: a rédea da vida nas mãos, o relógio despertando às 7 e 30, um café da manhã equilibrado e saudável, a pontualidade nos compromissos, as olheiras suavizadas, a cabeça boa, as roupas passadas, limpas, brancas e alvejadas, eu como aquele sujeito de sorte da música, são e salvo e forte - a minha maior alucinação sóbria.

domingo, maio 11, 2014

Todo fudido tem direito a um clichê.

Em uma sequência pequena o suficiente prá não configurar tradição, mas grande o suficiente prá ser mais que coincidência, eu tenho danado meu coração nos anos pares. Talvez porque nos anos ímpares reste um, e aí eu tenha alguém prá me escolher por último na queimada e falar: foda-se a queimada, você é legal, vamos sair daqui e ir brincar de, sei lá, tapão.

Em outra sequência, essa já mais explícita, parece que todo término de namoro da nossa geração gira em torno de uma cena, dois personagens de um filme e uma música metade pop, metade triste prá caralho: a cena em que Joel e Clementine vão jantar num restaurante e já não tem mais assunto, mas por pura coação social trocam duas frases: 'How is the chicken?' 'It's good.' (ou algo aproximado); Summer e Tom, de 500 days of Summer; I Know it's Over, dos Smiths. Parece que em todo facebook, em todo quarto vazio, em todos os fazer uma mala com os restos da pessoa porque um dia ela vai aparecer prá buscar, em toda fossa de relacionamento dos jovens adultos, lá estão esses mesmos clichês. Porque eles são universais o suficiente prá abarcar o geral dos relacionamentos que viemos tendo, e dos problemas que viemos enfrentando nesse processo falido de tentar acertar na vida.

Fora dessas sequências, e usando o clichê prá desmontá-lo, acho que o que vai ser mais difícil daqui prá frente vai ser lidar com o efeito Brilho-Eterno reverso que a gente nunca percebeu que rolou com a gente. Lembra quando a gente ficava escalando todos os eventos belorizontinos em que a gente havia estado junto antes de se conhecer? Talvez a gente tenha apenas se apagado um do outro há muito tempo atrás, quando percebemos que o nosso negócio não daria certo, e por isso ficamos tanto tempo nos esbarrando sem saber em cada show e mostra de filme gratuita dessa cidade. Um dia a gente se esbarrou de verdade, falou aquele -ok- do fim do filme um pro outro, tocou everybody gotta learn sometimes em alguma caixa de som de algum lugar do mundo, e lá tava a gente de novo, se enganando.

O problema é que agora nós já mapeamos a cidade (de novo) juntos, e quando nós nos encontrarmos naquelas mesmas filas de shows e mesas de bares (talvez por um tempo não haja mais dispô prá fingir interesse em mostras de filmes independentes suecos) não teremos mais o privilégio de sermos os desconhecidos de antigamente.