Clarice. Aurélio.
- Prá mim? Pouco me importa. É que nem aquele poema do Pessoa, sabe qual?
- Tá vendo? É isso que me irrita em você! Essa mania de não levar um assunto adiante, esse seu jeito de sempre sair pelas beradas! "Diálogo de referência" e eu aqui, de mala na mão te dizendo que vou embora. Hunf.
(Ele desvia os olhos do livro que estava em suas mãos e leva-os até a mala postada no chão ao lado de um par de pés. Sobe o olhar calmamente até fixá-lo nos outros dois olhos que estavam na sala.)
- Tô saindo pelas beiradas não. É que realmente não me importa. É sua a vontade de ir? Porta e rua, tchau e bença. Coisa chata é estar-se preso por falta de vontade. Porque, se for daquele jeito que o Camões coloca, a história é outra, cê num acha?
(Ela bufa e faz levantar uma mecha de seu cabelo, que sobe até a altura dos olhos prá, em seguida, voltar rapidinho a seu lugar.)
- Sempre bancando o forte, né? Vai dizer que não te dói aí dentro saber que eu vou e não volto, que lá fora eu me arranjo com outro, que aí eu não vou ser mais só sua.
(Ele pensa por um breve segundo e segue com os olhos ainda no livro.)
- Hum... Só me incomodo de ter de dormir sozinho. Tem feito frio por aqui, sabe. Mas, quanto ao que você fará, é teu o corpo, não meu. Além do que, em relação a ciúme você sabe que eu nunca fui nenhum Bentinho, né?
- Ah não, não. Pára Aurélio. Pára logo, antes que você comece a tagarelar sobre esse tal Dom Masmurro outra vez.
- Masmurro não, Clarice; É Casmurro, com cê.
- Bah! Que seja! Isso só faz diferença prá você, que vive esses livros, que vive dentro deles e esquece daquilo que conquistou aqui, fora das páginas. Você não percebe a gravidade das coisas? Eu sou a sua menina, poxa. Eu te amo, você tem um compromisso a zelar comigo! Não é possível que você seja tão frio!
- Ííí... Lá vem você com esse papo de "Pequeno Príncipe" outra vez. "Tu te tornas responsável por aquilo que cativas e blá blá blá..." Já te falei, Clarice. Isso é livro de Miss, isso é sub-literatura. Cê não pode levar essas coisas tão a sério...
(Clarice olha no fundo dos olhos de Aurélio e sente a raiva tornar rubras as suas bochechas. Um fio gelado se escorre por uma linha que vai da nuca às suas costas, e as pernas deixam de se firmar com precisão. Ela Salta no sofá e, depois de puxar os cabelos, socar o estômago, arranhar o rosto e estapear Aurélio - não sem soltar gritos e urros e uivos - , toma o livro que ele tinha em mãos e começa a rasgar as páginas e jogá-las pro alto, pros lados, pro chão, pra si. Ao se cansar, sem dizer mais palavra, apanha a mala do chão, passa da porta e ganha a rua.)
(Aurélio permanece sentado no sofá, contemplando pelo chão da sala os destroços a que se reduziu seu livrinho de bolso. Suspira pesadamente, e apoia a cabeça na mão direita.)
- É, até que eu gostava dela. Tinha alguma coisa, que eu nunca soube bem o que, mas que me lembrava insistentemente a Lispector...
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